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terça-feira, 17 de agosto de 2021

Pink Floyd, Cartola, Bowie e Baião

Posso ouvir sua voz

Não entender suas palavras

Uma canção dos Beatles fora de época

Mas o amor suporta

 

Posso não saber falar

Você não escuta o meu som

Um tango desritmado

Mas o amor comporta

 

Somos o desencontro das ideias

Você pede chá e eu sirvo cerveja

Um samba descompassado

Mas o amor que importa

 

Somos as tentativas e os erros

O acerto do tempo sem razão

Somos Pink Floyd com Cartola

Somos David Bowie com baião

 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Ela estava certa, foi preciso mudar o samba...


Ela estava certa o tempo todo. 

O samba atravessado, rápido e com rimas fracas seria mais um desfile sem brilho, com muita transpiração e pouca inspiração, quase como tinha sido nos últimos carnavais. Era o momento de entender a realidade, descobrir que a falta de recursos deveria ser encarada como uma grande chance de inovar, que do chão trincado da quadra ainda brotava alegria e que mesmo no pior momento, o sonho não poderia parar. 

Então mudaram a comissão de frente, uma coreografia mais simples, mas muito bem ensaiada, o carro abre alas também ganhou um chamado "toque minimalista" e acabou combinando melhor com a comissão, com isso a escola começou a ganhar não só um novo corpo, mas uma nova alma. 

Cada diretor de ala entendeu o recado, alguns cansados passaram o bastão para os mais novos, que chegaram com uma vontade gigante em fazer o melhor para aquela velha, porém querida escola. Começaram também a mudar a forma de desfile, tentando diminuir erros de evolução e harmonia. Os carros foram reformados, as fantasias passaram a ser pensadas com mais carinho, passistas se empolgaram e o povo do barracão trabalhou ainda com mais afinco. 

No coração da escola o velho e apaixonado mestre ganhou um parceiro, a bateria mesmo com instrumentos cansados manteve a paixão e ganhou jovialidade, a comunidade sentiu o chamado logo nos primeiros ensaios, era um toque, um batuque conhecido, mas com um encanto diferente... 

Ela estava o tempo todo certa! Era preciso mudar o samba, reconhecer seu povo, ficar mais leve, divertida, simples, mas sem perder o glamour e a imaginação. E naquele Carnaval, a velha escola conquistou seu mais importante título, a escola e seu povo se reconheceram, se identificaram e voltaram a se apaixonar... 

Pouco importa quem ganhou o carnaval, a vitória daquele povo foi maior que qualquer nota de juiz. E foi ela quem avisou, o samba estava atravessado!

segunda-feira, 13 de abril de 2020

As tardes de domingo em 1988


A macarronada da minha avó Jacyra estava divina, sentada em seu quarto a tia Benê com o radinho ligado ouvia as informações do jogo da tarde, o seu Orlando Vermelho (meu avô) falava sobre as eleições daquele ano com o Tio Fábio e a minha prima Alessandra fazia uma tremenda onda para comer seus nuggets… Eu tomava com muito gosto meu último gole de "Coca-Cola".

Naquela época, aos dez anos eu já adorava política, vivia aquilo como o futebol. Éramos torcedores do Miné, não era só uma eleição para prefeito, era como se fosse um clássico no Morumbi lotado. Mas naquele domingo a pesquisa da Gazeta de Taubaté pouco me importava, muito menos o que o Salvador (o outro candidato) tinha dito.

Naquela tarde, levantei rápido da mesa, tomei alguma bronca de leve do Seu Orlando, a tia Edna deve ter falado algo também, e a Vó perguntou se meu pai vinha me buscar, respondi que sim e que o Tio Tadeu também iria com a gente. Enquanto o tio despedia dos demais, eu já estava sentado na mureta na porta da casa. Não demorou muito e meu pai com sua "Variant" branca ligada na rádio passou para nos pegar rumo ao estádio… Naquela tarde paramos perto da casa da Tia Ivone, atravessamos a linha e de cara deu para observar, a "Casa" estava cheia!

Era o momento mais feliz de todos para um garoto de dez anos… Nem mesmo o hambúrguer da "Fino Coffe", a pizza do "Convênio" ou mesmo a piscina ou partidas de futebol de salão na AABB, nada era mais legal que aquele clima de "Joaquinzão". Tinha gente apressada, barulho de fogos, vendedores de laranja já descascada naquelas redinhas amarelas, tinha bandeiras, de todos os tamanhos e modelos, sempre nas cores azul e branca. Nessa época ficávamos atrás do gol de entrada, às vezes encontrava no caminho ou já lá no estádio com os amigos, era o Leandro, Rodrigo, os irmãos Miragaia, o Reginaldo santista do "Dom Pereira", o Dimas (que vivia querendo bater em mim), tinha o pessoal da Vila Marli que ficava perto da Torcida Explosão (que depois fundaram a Dragões)

Geralmente fazia muito sol, eu e meu irmão Fabinho, estávamos sempre com bonés e nada nos faltava, laranja, refrigerante, picolé, água… E o palavrão do portão do estádio para dentro era liberado! O time entrava em campo com muitos rojões (grande Maciel) e com cinco minutos de bola rolando o talco ou pó de arroz fazia uma fumaça branca… A bandinha de carnaval vinha tocando o tradicional "poropópó", e o povo ia se levantando, a Explosão abria caminho para seu lugar na arquibancada.

Em campo nosso time era ótimo! Meus ídolos eram o Marcelo (goleiro), o Neto, Alberto, Careca, Miguelzinho e Reinaldo Xavier. Meu pai era fã do Alencar nosso camisa cinco. Tinha também o Daniel, Fagundes, Ailton… Como era legal!

Não vou lembrar do empate contra o Catanduvense que nos tirou a chance de subir. Aquele campeonato de 1988 foi muito maior que aquele jogo!

Foi a primeira vez que a minha geração viveu com tanta intensidade um campeonato, o time da cidade passou a ser nossa prioridade. O Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos passaram para o segundo plano. Nossas conversas eram sobre o Taubaté. No rachão da rua ou na quadra improvisada da escola, éramos o Burrão da Central, até a minha capa da prova foi um desenho da nossa torcida com faixas das torcidas Explosão e Camisa 14.

Naqueles domingos de 1988 aprendi a ser torcedor de verdade. Não subimos, o nosso candidato a prefeito perdeu feio a eleição e um pouco depois meu pai foi transferido para Santos (onde acabei passando uma temporada). Talvez, tenha sido uma época complicada para os meus pais, hoje sei que o momento econômico do país era péssimo, mas mesmo sendo curioso e leitor voraz da Folha em casa e do Diário Popular no meu avô, eu ainda era um menino que sonhava em ser jogador de futebol e gostava da Vanessa que morava perto da minha antiga casa na Monção (Gláucia você foi um ano antes) e tenho essa época guardada com muito carinho no coração.

Em 1988 foi assim, teve o título do Timão com o gol do Viola, tinha as aulas de judô, teve as olimpíadas de Seul, a querida professora Maria Imaculada (que hoje mora no céu), ainda jogávamos Atari e fazíamos fabulosos campeonatos de futebol de botão, mas nada foi mais marcante que as tardes de domingo no Joaquinzão…




Foto: Pedro Nogueira

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Ela...

Ela parece sol que não queima, que ilumina, que deixa a cabeça fresca e o coração mole. É água de coco gelada, suco de abacaxi com hortelã, mas também é tequila, com limão e sal

Deixa as pernas moles, ideias bambas, as vezes bolero, tango e rock! Me confunde, explica, excita e encanta, parece dança, um samba, de muitas notas que toca nos sonhos

Vida e flores, seja livre, somos livres, juntos.
Poesia e crônica, fotos e livros, linda imagem, doce sensação!

terça-feira, 24 de julho de 2018

As cores de um sábado na quebrada

A luz do sol quase cegava a vista já embaralhada depois de tantos socos, depois de chutes... Uma poça de sangue era o contrataste em cores daquela calçada sem cor, seca e quente. Pensamentos perdidos, estímulos para tentar se mexer e recebeu mais uma pancada, dessa vez de uma barra de ferro, agora a mente apaga, volta, apaga, vem um sono...

Era apenas mais um dia quente no inverno seco de São Paulo. Mais um final de semana em uma das tantas “quebradas", tinha pastel, o caldo de cana, cigarro, e um corte na cachaça do “parceiro”. Mais resenha, depois veio o espetinho, uma cerveja gelada, apareceu alguém com um “fino”, um tapinha, risada, futebol, as mulheres, os “trampos” e “corres”, pagode alto, barulho do ônibus e a poeira subindo. As meninas também colam no rolê, a amizade é firmeza e rola o respeito.

O sábado pintava em cores diferentes a realidade cinza de jovens, crianças, adultos, do povo daquele pedaço de chão. Tinha pipa no ar, jogo de baralho na mesinha da praça, vendedor de sorvetes, um pregador religioso aos berros, bancas de mídias piratas, roupas, camisas de times, frutas e até livros. Um colorido de felicidade, de luzes e sons e sorrisos.

Um sobressalto no peito e um grito no ar, o colorido volta a perder a cor, as pessoas correm desordenadamente, uma criança em prantos é “resgatada” por alguém, carros acelerando, motos barulhentas e o sábado agora é feito em socos, pedras, chutes, barras de ferro e madeira... A quebrada foi invadida e ninguém teve tempo para nada, era um acerto de contas, nenhum tiro, alguns correram, a pouca polícia assistindo, tudo muito rápido e o jovem dormiu entre a calçada e o asfalto, ninguém sabe se ele acordará, ninguém.


terça-feira, 22 de maio de 2018

Ana Júlia

Ana Júlia não era a música, era agora um número, mais um número sem cor, reação ou vida. Não era mais a menina bonita que na infância tinha festinhas da Xuxa e da Moranguinho, também não era a adolescente apaixonada por “New Kids oh the Block “ e que na escola distribuía seu caderno de perguntas aos amigos e principalmente ao paquera da sétima série. Ana Júlia agora é número.

Estudou, brincou, jogava vôlei, juntou muitas economias para comprar seu primeiro telefone móvel, adorava ir a balada nos finais de semana, aprendeu a beber, fumou “Gudan”, pulou carnavais no clube, teve namorados, e adorava comida mexicana...

Até que conheceu alguém, que tocou seu coração. Era de outra cidade, um “moço bom”, diziam suas tias, o “gente boa, amigão”, segundo seu irmão e primos, o “genro dos sonhos, o cara ideal... Não gostava de sair muito, não comia no “mexicano “ e aos poucos foi mostrando que não era apenas seu carro do ano, sua casa na praia ou a conta bancária que era sua, Ana Júlia também.

Então, na primeira discussão veio a primeira ofensa, depois entre outras, um empurrão até um forte tapa no rosto.

Ana Júlia passou a viver um relacionamento abusivo. E não sofria apenas dores físicas. A psicológica era como um mar, que a separava da família, dos amigos, da vida que tanto amava . Era uma mulher aprisionada no medo, não conseguia romper o silêncio que a calava, vivia o terror como se fosse um dia comum. Não foram apenas tapas, os estupros passaram a ser parte de sua vida. Sua única luz era a bebida ou mesmo algum calmante que comprava escondido.

Uma noite acabou perguntando sobre uma amiga que sempre ligava para ele... Acabou sendo espancada mais uma vez, naquela noite, ela contaria sobre sua gravidez, mas não conseguiu, mais uma vez humilhada, em estado de choque, com o coração em frangalhos, escolheu ter uma noite mais longa de sono, e não tomou apenas calmantes...

Após a surra, ele não ficou para dormir em sua casa, ele não estava lá na manhã seguinte, aliás, ele desapareceu por um bom tempo. Ana Júlia dormiu para sempre, virou mais um número, de um país que está matando suas mulheres.

Estatísticas apontam que a cada uma hora e meia, morre uma mulher vítima de feminicídio no Brasil.

Que tenhamos menos números e mais Ana Julias da música...

Não se cale diante da violência contra a mulher.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Flávia, Pedro e a bala de hortelã

Um amor sem tamanho e juízo, nasceu sem planos e motivos, bastou um sorriso em uma tarde de domingo na praça.

Pedro jogava conversa fora com amigos, lembrava de passagens divertidas, dos dias de calor no ribeirão, as peladas no campinho, pipas, jogo de taco e até dos primeiros porres em um carnaval qualquer no clube. Apenas de bermuda, sandálias e peito aberto… Um dos sujeitos mais queridos e divertidos da cidade. Um coração do tamanho da alegria daqueles que o cercavam na mesa do boteco da praça.

Flávia era moça de cidade grande, mas tinha sangue dali, estudada, falava diferentes idiomas e conhecia tantos mundos… Uma voz encantadora, artista nata, com paixão por artes plásticas e poesia. Naquele domingo, ao passar pelo boteco, sentiu-se flutuar e sorriu instantaneamente. Um calor, uma aperto no peito, e a uma música ao fundo que jamais sairia de seu coração.

Demorou mais alguns dias até um reencontro. Pedro também vivia em cidade grande, já era quase doutor advogado. Flávia estudava para ser professora, cantava no coral, ajudava em projetos sociais dentro da pastoral de sua igreja. Era fã enlouquecida dos “Rolling Stones”. Pedro praticava basquetebol e fazia discursos onde pedia além de justiça, igualdade, liberdade, mais humanidade das pessoas do poder. Era fã do Belchior, do Chico Buarque e da Alcione, e torcia para o Botafogo. O reencontro foi sem querer, no ônibus para a “terrinha”, ela sentou em uma poltrona ao lado da dele, entre eles um corredor e a ressaca de Pedro. Quando despertou quase chegando, ela ofereceu uma bala de hortelã, ele aceitou e conversaram…

Finais de semanas mágicos

Flávia aceitou a companhia até o portão da casa dos avós. Ele caminhou até sua casa, do outro lado da cidade. Até chegar em casa, fumou um “careta” e no caminho estava em outro mundo, com apenas a voz e o sorriso dela. No fim da tarde, foram ver um show de um conjunto de samba no mesmo boteco de sempre. Não dançaram, mas parecia que sim, de mãos dadas saíram para dar uma volta e trocaram o primeiro beijo…

E foram tantos beijos e abraços, muitos finais de semana, dias de sol, novos amigos, conversas longas, experiências, diferenças, queijo e goiabada, risadas soltas, café na avó da Flávia, causos do tio do Pedro, macarronada, banho no ribeirão, cervejas, “Cuba Libre”, e nos finais da tarde daqueles domingos, antes de voltar para cidade grande, ele quase sempre festejava uma vitória do seu Alvinegro. E quando Flávia disse que não ligava muito para futebol, mas gostava do Fluminense, ele achou divertido.

Foram dias de desafios

A vida era distante e fria na cidade grande. Não podiam se ver constantemente, estavam em momentos decisivos, compromissos não só estudantis, eram cidadãos na acepção da palavra. E nesses momentos não existiam domingos de sol, mas de cobranças e censura. De coragem e medo, que andavam lado a lado, de certezas que eram diluídas em perseguições e prisões. Não eram apenas dias de chumbo, eram nomes trocados, receita de bolo em jornal, de torturas, e vozes que mesmo no sufoco não se calaram.

Pedro escrevia, sua arma era uma velha máquina de escrever, os fatos apurados com cuidado e a certeza que faria o registro de sua época. Não deitava seu olhos. Era o coração imenso do interior, mas rasgava em palavras, verbos e alguns adjetivos aqueles que inventaram e bancaram a tristeza. Flávia multiplicava o conhecimento, fazia de sua voz uma canção libertária de luz, baseada em fé e educação. Contestava com conteúdo, incomodava com ternura, suas aulas eram marcantes e reais.

Os finais de semana na “terrinha” ficaram raros. A vida e os dias passam rápidos demais. E mesmo vivendo a mesma realidade, diante do inimigo comum, acabaram distanciando. A luta fez sua parte, enquanto Pedro buscava um utópico diálogo, tentava ser legalista, dando murro em ponta de faca, Flávia era a ponta da lança, o dedo no gatilho, o olhar acuado do oprimido, a reação da ação desproporcional dos opressores, sua arte agora era não morrer.

E tudo ficou ainda mais difícil

Pedro perdia suas batalhas e espaços, não existia mais trabalho, tentou mergulhar na “terrinha” por alguns dias, mas não tinha sentido sem Flávia. O mundo estava estranho, até mesmo sua Estrela Solitária não brilhava. Pouco ficou por lá, já não recebia tantos sorrisos, o garoto que foi criado naquelas ruas, o coroinha mais desastrado da Matriz, era visto com desconfiança e até temor em seu próprio quintal. Em um canto qualquer, Flávia sofria em dor. Alvejada em uma ação, lágrimas silenciosas, faltava Pedro ao seu lado, faltavam sonhos e até mesmo as lembranças eram escassas. Sua única ideia era permanecer viva.

Em uma tarde de muito frio, com pouco dinheiro, um microfone mudou a vida de Pedro. Com palavras incisivas e diretas, foi cirúrgico em suas críticas, seu coração buscou inspiração em seu amor, em suas crenças, em seu caráter, naquela tarde a voz de Pedro foi a canção de Flávia, foi coração e lança, sentiu uma emoção semelhante ao olhar trocado na praça, sentiu Flávia ao seu lado, sua energia, seu amor.

E veio a distância…

No rabo de um foguete deixou a pátria amada. Pedro não tinha mais o macarrão na casa dos pais, não podia usar sandálias e ficar sem camisa no banco da praça. Agora a realidade era fria, outro idioma, uma dor constante no peito, perdido de razão, odiando cada detalhe, vivendo um dia de cada vez, um exilado que só havia escancarado amargas verdades. E fez disso sua sobrevivência, fez a única coisa que poderia fazer, além de sentir saudades de Flávia, escrever.

Flávia foi vivendo como podia, clandestina, perdeu a identidade, família, amigos, menos sua fé e amor. Ainda tinha a música, mas não conseguia sorrir, assim um dia acabou caindo. Não tinha energia para resistir, seguiu toda cartilha odiosa da tortura, dor e humilhação. Conviveu diariamente, com longas conversas com a morte. Aliás, flertou com o fim, quase perdeu sua vida.

Palavras e canções que salvam

As verdades antes amargas, ajudaram a libertar vidas. Eram muitos “Pedros” nas feridas abertas, o sangue de tantas “Flávias” era uma nódoa de horror, a vida precisava florescer e o sol voltou a brilhar. Voltaram muitos irmãos e irmãs do Henfil. O verde-oliva das fardas precisava se livrar da podridão e apesar de tantos “vocês” o amanhã já era um novo dia.

Pedro voltou sem alardes, ninguém o esperava na cidade grande. Quando chegou, respirou o máximo que podia. Sentiu o calor que tanto lhe fez falta, tomou sozinho um copo de garapa, pisou em um jardim e foi direto para a rodoviária, precisava de sua “terrinha”. Flávia já estava nas ruas há algum tempo, não cantava e perderá parte da visão, não tinha mais familiares vivos na “terrinha”, abdicou da fé, pois fora obrigada a perder um fruto dos seus dias de horror.

E o tempo fez sua parte

Cicatrizou algumas feridas, outras eram impossíveis. Apresentou terríveis vilões, a realidade ainda era difícil, a dor recente e a liberdade engatinhava. Na “terrinha” o ribeirão continuava límpido, o boteco estava um pouco mais “chique”, a missa das crianças ainda eram aos domingos pela manhã e o Botafogo de Pedro nunca mais havia conquistado um campeonato. Pedro não refez totalmente sua vida, tinha um pequeno jornal, advogava, reencontrou amigos, não gostava da cidade grande e convivia com a ausência do amor. Flávia sumiu no ar, ninguém sabia por onde andava ou vivia. Ela escolheu a solidão, suas dores eram muito mais profundas, sentira a guerra na pele, nos ossos e na alma.

Um dia Flávia comprou balas de hortelã, viajou até a “terrinha”, era uma mulher muito diferente, discretamente assistiu de longe Pedro proseando no boteco, sozinha caminhou até o ribeirão, passou pela porta da casa que viverá seus avós, andou por outros pedaços da cidade, e antes de partir no fim da tarde, sentou-se em dos bancos da praça, que estava quase vazia e sentiu uma emoção muito forte… Pedro estava lá, ele sentiu o mesmo. Olharam-se, não trocaram palavras, ela ofereceu uma bala de hortelã, ele aceitou…