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domingo, 20 de outubro de 2013

Sapato Velho

A pedra do paralelepípedo da rua agora é seu fim. Não havia mais tempo para lágrimas, lamentos, tristezas, sonhos que se acabaram no tempo, no trabalho, na rua, em um triste quarto de pensão. A queda é libertadora, em poucos segundos filmes em preto e branco, histórias em tom cinza, que ganham cor apenas no sangue, cheiro de morte.

Cansou de tentar lutar e sorrir, perdeu o encanto na única doce companhia, até mesmo café forte e sem açúcar, agora mais parece uma água quente, não tem mais livros, não tem para quem escrever cartas, a meia que deveria esquentar os pés estão úmidas, o único sapato furado não é capaz de mantê-los aquecidos.

Lembrou de sua juventude, das danças, do carnaval, das namoradas, daquele gol inesquecível, do filme de Mazarroppi, das noites de vinho, músicas e a até mesmo das confusões juvenis.

Pensou no velho pai, que partirá há tanto tempo, na bondosa mãe que não suportou perder o filho caçula na guerra e na esposa, única que amou, que também partiu em uma noite fria, sem avisar, lentamente, não acordou na manhã seguinte.

Sem filhos, sem amigos, quase nenhuma dignidade. Naquela tarde, recebeu o aviso de despejo, a pedra de paralelepípedo foi a última visão... Seu Umberto tentou voar do quarto andar, mas seus sapatos estavam furados.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Ela não sabe que dois de novembro é dia de finados

Floriano tinha nome de general, de presidente, mas pouco conhecia seu xará do passado. Aos 42 anos era só empolgação no feriado prolongado de finados. Empregado em uma multinacional na capital, ao lado de dois amigos, alugou uma casa em Ubatuba e convidou mais três moças, que nada pagaram, entraram com seus corpinhos lindos de vinte poucos anos e até um pouco de amor para dar aos quarentões.

Não tinha barriga, malhava diariamente em uma academia bem moderna. Leitor de escritores modernos, apaixonado por festas e carros velozes, drogas sintéticas e música eletrônica. Quase não gostava de futebol, se dizia são-paulino, mas não via o time jogar desde o começo dos anos 90. Sempre bem trajado, com roupas modernas e caras, casou-se duas vezes, separou e não tinha filhos, viajava para o exterior, frequentava bares descolados e boates, não conhecia quase nenhum museu ou mesmo um espaço cultural.

Filho único, pais separados, a mãe morava sozinha na capital, mas longe de seu apartamento e o pai, falecido há vinte anos, já quase não era lembrado por ele. Não era um sujeito infeliz, muito pelo contrário, seu vazio fora costurado em uma família inexistente, em uma cidade de pedra, mas procurava em uma vida rápida palavras e sorrisos descartáveis, como foram seus colegas de escola, ginásio, colégio e faculdade. Formado em administração de empresas, pós-graduado, com MBA e cursos no exterior, era muito competente em seu trabalho e admirado por colegas, mas com poucos e sempre novos amigos.

“Não tenho amigos de infância ou de longo tempo, por isso não tenho irmãos ou primos”, costumava falar Floriano em tom de brincadeira, mas com certo tom de melancolia e verdade.

Teve muitas e belas namoradas, nunca havia se apaixonado, nem mesmo pelas esposas, mas era um amante divertido e que sabia ser sedutor e atencioso, mas em certos momentos frio e distante.

Estava depois de alguns anos curtindo de fato um feriado diferente. Esqueceu as viagens para as cidades do nordeste ou para sítios em festas fechadas para curtir ao lado dos “novos amigos” o espírito “praia mais distante”, sem muito luxo, apenas o essencial. A casa, em um condomínio mais afastado do centro era palco de algumas conversas interessantes, flertes e novas paixões de verão declaradas.

Floriano flertava com uma moça de pouco mais de 25 anos, corpo escultural, estudante de turismo, também paulistana, uma história um tanto parecida, se não fosse pelo fato de Amanda (seu nome) já ter uma filha de dois anos e, menos recursos financeiros. Ela não conversava com o pai da criança, que era basicamente criada pela avó.

No amanhecer do dia dois, acordaram juntos, era um sentimento diferente para ambos, saíram para andar pela cidade, almoçaram e andaram de mãos dadas na praia.

Pela primeira vez, Floriano sonhou com um mundo diferente e sentiu um descompasso no peito, um sentimento forte, suou frio e sentiu-se verdadeiramente feliz, quando caiu nos braços de Amanda e acabou desencarnando vítima de um infarto quase fulminante. Morreu feliz.

Amanda quase não teve nenhuma reação, chorou, voltou com as amigas para São Paulo ainda no mesmo dia e continua frequentando baladas sertanejas e guardando dinheiro para viagens com amigas, é uma mãe um pouco ausente e costuma contar cada passo de sua vida em redes sociais, sempre com fotos e frases felizes, escritas com abreviaturas e sem acentos. De Floriano, apenas uma foto com os dizeres, “saudades de você”.

Ela não foi ao enterro de Floriano, muito menos ao velório, e nem levou flores, ela não sabe que dois de novembro é dia de finados e planeja viajar para Maresias no próximo feriado.