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segunda-feira, 21 de julho de 2014

Asfalto doce de sangue

O frio corta, rasga, o vento é um inimigo, tempo seco e cidade cinza. Passos largos e ligeiros pelas calçadas quase vazias em uma tímida manhã de domingo, não tem mais o cheiro de álcool, apenas do cigarro, companheiro de anos. Mais uma noite que acaba com poucos ganhos para Sandra, que sonha em chegar em casa e dormir

Seus passos ficam mais curtos, a meia calça está rasgada, o sapato incomoda. Acende mais um, traga e não sente nada, o frio piora, alguns carros, nenhuma carona ou sorriso, uma música de fundo e uma mente que como por mágica, volta anos através de uma memória ainda muito viva.

Lembrou das brincadeiras com as irmãs, do primeiro amor, a festa de debutante, o sexo, o amor, outros amores, algumas músicas, comidas, viagens e sonhos. A filha que faleceu ainda bebê, a mãe que morava em outra cidade, o pai que morreu há muito tempo.

O sol começa a rasgar o céu carregado, uma neblina começava a ser feita, as caixas de brigadeiros e beijinhos que sobraram quase não pesam, mas o prejuízo pela noite de poucas vendas na porta de bares e clubes é preocupante

Sandra, com a cabeça envolta a mil pensamentos não viu um ônibus que dobrou a esquina, o asfalto ficou encharcado com sangue e doce. Na manhã preguiçosa e gelada de domingo, o resgate demorou a chegar. Lágrimas escorreram silenciosas de seu rosto quase morto. Não deu tempo de chegar ao hospital, antes de partir, Sandra lembrou que precisa recuperar sua mercadoria caída em uma poça de sangue, que ela não tinha enxergado.

Aos 57 anos foi enterrada com um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria” e apenas duas irmãs e os maridos, que pagaram as despesas, estavam presentes. Ninguém chorou.