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quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Ele nunca teve escolhas

Sebastião de Jesus tinha 22 anos, era preto, quase escravo, bebia, fumava, roubava para comer e servia aos seus.

Não conhecia o pai, não sabia quantos irmãos tinha ao certo, era batizado mas não rezava, não praticava esportes, mas corria muito rápido. Nunca teve escolhas, sobrevivia desde seu primeiro dia no mundo

Aprendeu a atirar, sabia golpear com facas, adagas e até espada, tinha em seus ombros incontáveis vidas de inimigos anônimos, todas essas sem nenhum peso em seu coração.

Em uma tarde de dezembro foi cercado e morto, sofreu, foi espancado, torturado e não teve nenhum julgamento oficial. Ele não foi executado por justiceiros, polícia ou pela população enfurecida depois de mais um linchamento.

Sebastião, preto, pobre, bêbado, fumante, ladrão, assassino, foi enterrado no mesmo local, com honras militares e a bandeira do Brasil. Era mais um herói de guerra no Paraguai. Ou seria mais uma vítima?

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Moderno Zeppelin II

Letícia corria na chuva fina, uma rua reta, vazia, na noite fria, pés molhados e cansados. Lágrimas congeladas de junho, cabeça girando entre demônios e pessoas, e um gosto de sangue na boca. Suas mãos parecem determinadas, expressão sofrida e passadas regulares pelo asfalto cada vez mais alagado. Alguns carros passam, ela e eles não se enxergam, sem fones no ouvido, apenas sons de gritos e desespero...

Chutaram suas pernas e tronco, cuspiram em seu rosto, pedradas nas costas, a humilhação é quase uma bondade quando cortaram sua boca, quebraram alguns ossos, mutilaram a genitália e pauladas acabaram deixando-a quase morta em um canto qualquer

Dias depois, o corpo apodrecia.

Era pecadora ou pecador, aos olhos de seus carrascos um ser mutante, feita para apanhar e boa de cuspir, não precisava de nenhum outro Zeppelin.

A corrida já era de outra vida, com sua morte simples, ninguém se importou.

Letícia não sabe que existe lua. Não espera o sol, nenhum dia deverá nascer.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A humildade acaba aqui!

Cheio de orgulho começo esse texto lembrando do eterno Nelson Rodrigues. Desde ontem o Esporte Clube Taubaté deixou para trás o inferno da terceira divisão, sim um inferno! Estádios caindo aos pedaços, pequenos, apertados, sem água, banheiros sujos... Times sem expressão, o inferno!

Se um campeonato ou acesso não se conquista apenas em uma noite, o Taubaté é mais um exemplo, a luta foi árdua, tivemos derrotas doloridas e empates que magoaram mais que derrota. Tivemos erros, muitos erros, confesso, cheguei a jogar a toalha, talvez blindando meu coração sofrido e magoado com o tempo, com os acessos que não aconteciam, com felicidades apenas imaginárias. E os erros foram sendo consertados, cada um deles, e as vitórias surgindo, atletas despontando, e mais uma vez o sonho insistindo em ser sonho.

A vitória diante da Votuporanguense foi o meu sinal, naqueles 3x1, pensei, podemos! E desse dia em diante, nenhum dia que passou eu não pensei, imaginei como seria cada jogo seguinte, combinações, classificação para o quadrangular decisivo. Os 2x0 diante do São José dos Campos FC fora de casa foi a certeza, éramos sim favoritos ao acesso.

Mesmo no crescente o coração fica suspenso, tenta não empolgar, a cabeça manda manter os pés no chão, e assim foi, mesmo depois de fazer seis pontos no quadrangular. Os empates contra o Atibaia foram alertas, o inacreditável gol perdido em Indaiatuba no último minuto também, não seria tão simples, nunca foi.

E caprichosamente o sonho virou realidade em um lugar distante, Barretos. Olhos, ouvidos, corações, mentes voltados para um aparelho de rádio. Nas velhas ondas da "AM", o “explosão” Ricardo Alcântara narrava colocando a mesma emoção de sempre, não conseguia pensar direito, o grito "Ronaldo!" (Nosso goleiro) era constante, precisávamos apenas de um empate, um simples empate.

Mas como comecei esse texto, reafirmo, a humildade acaba aqui! Empate? Não! Vencemos! Lembro que foi no primeiro tempo, o grito de gol, Thiago Viana, gritos, abraços, o sonho começava a virar realidade. Passou o segundo tempo, poderia ter o terceiro, quarto, oitavo, décimo, não tomaríamos o gol. O Barretos poderia estar atacando até hoje, o vento, o sobrenatural não deixaria a bola entrar.

A camisa centenária envergou o varal!

Ana e Talita, o sonho virou realidade!

Subimos!

quarta-feira, 18 de março de 2015

Meu único olho está aberto

Ele chutou minha boca, perdi alguns dentes, já estava quase inconsciente. Não tinha mais lágrimas, foram gastas enquanto era estuprada. Apagaram charutos no bico dos meus seios, perdi as contas dos cuspes, não ouvia mais risos ou gritos de ordem, a consciência como em desespero pela vida lutava sozinha em continuar em pé, a dignidade estava afundada em fezes que acabei expelindo involuntariamente.


Mentalmente pedia a Nossa Senhora que me levasse, mas eles surgiram na sala com o meu filho de dois anos no colo. Ele chorava descontroladamente. E nem mesmo um tapa desferido em seu indefeso rosto dado por um deles, o fez calar. A criança chorava ainda mais, sua pele foi ficando vermelha, tentei gritar e recebi mais um chute no rosto e acabei apagando.


Acordei em um local diferente, com muitas dores, coração na boca. Não tinha ninguém pouca luz, não conseguia falar, muito menos gritar. Um homem entrou rindo no que parecia ser uma cela. Disse que eu não tinha mais família e nem vida. Eu não conseguia chorar, apenas olhava em seus olhos, sem saber o que fazer... Ele contou que meus pais, marido e único filho haviam sido mortos, e que eu seria a próxima. Mentalmente supliquei para Deus que de fato isso acontecesse, que eu morresse ali.


Não morri. Acordei e dormi, fui violentada outras vezes, perdi o tempo e a noção que fiquei ali. Engravidei e perdi o bebe, fruto de um dos estupros, perdi em uma das dezenas de sessões de tortura que continuei sofrendo.


Um dia acordei e estava deitada em um mato, com terra no rosto, sol e vozes. Eram crianças, estavam assustadas. Eu estava nua, e mal conseguia falar, não podia levantar. Fui socorrida por pessoas que viviam naquele lugar, finalmente pessoas com olhares de pessoas.


Quando voltei, descobri que não havia perdido meus pais e filho. Meu jovem marido procuro em meus sonhos até hoje, não consigo encontra-lo há anos, nem mesmo nos sonhos. Meu filho (graças a Deus) não cresceu com sequelas, vive relativamente bem. Meus pais já foram para o outro plano. Nunca mais consegui me relacionar com outro homem, perdi parte dos movimentos, fiquei cega de um dos olhos e tenho vergonha até hoje dos cortes profundos em meu rosto.


Nunca deixei de acreditar ou sonhar com dias melhores para todos. Em igualdade, justiça social e liberdade. Mesmo nos piores momentos. Apoiei, desacreditei, votei, levantei bandeiras, critiquei, tive e tenho orgulho de colegas dos tempos cinzas, como não concordo com outros. Pintei a cara, fiz caminhada pela paz, fui para as ruas tantas e tantas vezes, não vou bater panela (pois ouvir também é democrático), mas fui para a Paulista novamente. Mesmo acreditando que escolhi nas urnas talvez a melhor opção, ainda sou povo e tenho o direito de manifestar, como não aceitar alguns acordos políticos que colocam grandes canalhas em posições confortáveis.

Quando se sofre na pele e na alma o sabor da truculência, é impossível tentar usar as mesmas armas. Por isso, quando vi jovens, adultos e até pessoas da minha idade pedindo o fim da liberdade, quando vi um daqueles que socaram meu filho, que chutaram meu rosto, vestido de fraque, sendo homenageado, sorrindo e dançando em um palanque, resolvi voltar para casa, mais uma vez não chorei, o ódio não morre tão fácil, mas o calei mais uma vez. Depois pensei e descobri que eu sou uma vitoriosa. Se hoje o assassino do meu marido tem a liberdade de dançar de fraque em uma manifestação pública, foi graças ao sangue dele, meu e de tantos outros que lutaram por isso, a liberdade de pensar diferente. Nós vencemos!


Não vou desfraldar minha velha bandeira vermelha na porta da minha pequena casa, ainda discordo de inúmeras decisões tomadas pelo atual governo, mas enquanto esses moços e moças continuarem a pedir algo que é contra a liberdade, perderão uma velha parceira de lutas.

Estou com meu único olho bem aberto.

Liberdade só existe respeitando a democracia.



quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Diferente da Sessão das Dez...

Ele estava sentado no banco da praça, olhava para o céu, paz de espírito, nas mãos um saco de pipocas e na cabeça alguns sonhos.

Ela chegou, sem pipocas, também olhou para o céu, abriu um sorriso e fez a pergunta:

- Será que vai chover?

- Acho que não. Essas nuvens foram feitas para você olhar para o céu e ficar brincando de ver figuras com a namorada.

- Verdade! Você tem namorada? Perguntou a moça

- Ainda não... E você? Respondeu olhando em seus olhos e não mais nas nuvens.

- Ainda não também, por enquanto. Disse ela sorrindo.

Ele ofereceu pipocas, ela aceitou, casaram-se tempos depois e diferente da “Sessão das Dez” do Raulzito, o cinema não incendiou, pois se conheceram no banco da praça.