Total de visualizações de página

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O que o rádio toca?

Antes do tocar do despertador, bem antes das buzinas e barulhos da cidade, ela estava em pé, tomando seu café com pão amanhecido, ouvindo alguma besta gritar palavras de ordens em uma estação de rádio qualquer. Eram palavras sem sentido, uma espécie de oração que preenchia um vazio, não existia mais ninguém naquele apartamento, apenas sua solidão.

Ele dirigia rápido, julgava colegas mentalmente, e tinha nojo de tocar nas mãos das pessoas. Tinha sempre álcool em gel, muitas vezes estacionava em vagas especiais de idosos ou deficientes, era fã do comentarista de uma rádio popular que também gritava palavras de ordens. Era sua única companhia pela manhã.

Agora era uma música, melodia animada, letra que contava a história de uma festa em algum canto, bebidas, traição, lágrimas e vingança. Na canção a mulher é ridicularizada e o cantor solta gritos histéricos sem sentido. Alguém ouvindo por ouvir, limpando um canto qualquer e pensando se teria tempo e dinheiro para almoçar.

No fim do expediente uma carreira esticada, mais um tiro, olhos fixos no espelho e mais uma noite. No carro o som das dez melhores do dia até o bar descolado.

E nos solavancos do ônibus público, em pé, perdida em pensamentos e lutando contra o cansaço, no fone de ouvido ela desliga o rádio na "Hora do Brasil".

O que o rádio toca?








terça-feira, 28 de junho de 2016

Fabiana tinha tantos defeitos...

Ela nunca foi uma pessoa pontual, não era a mais bela das moças do bairro e muito menos das mais feias, tinha seu charme, ruiva, olhos claros. Bebia, fumava, gostava da noite, personalidade forte, inteligente, geniosa, muitas vezes até assustava seus amigos, amigas e admiradores.

Um dia, Fabiana conheceu Orestes...

Moço alto, cabelos claros, inteligente e com ideais semelhantes aos dela. Não era muito da noite, calmo, bem humorado e com o coração machucado. Um rapaz muito educado, gentil e simples. Havia sido abandonado por outra mulher, depois de alguns carnavais, tinha o sofrimento no olhar.

Dançaram uma vez, ela um pouco “alta” pelos drinques que já havia tomado, ele também. Era uma música antiga, eles se beijaram...

E beijaram outras tantas vezes e muitas vezes...

Ela sonhou com um mundo melhor, ele também acreditava no justo, com igualdade para todos, com dias felizes. Lutavam por eles, por familiares e amigos, por todos. Um dia esse sonho trincou. O mundo deu “passa moleque” e ambos ficaram tristes e perdidos.

Orestes, ainda muito magoado daqueles antigos carnavais, foi aos poucos deixando Fabiana, esquecendo-se de sua presença, de seu cheiro e riso. Ela não queria aceitar, também tinha um coração baqueado, mas acreditava no olhar dele, para ela, aquele olhar melancólico, era o melhor do moço.

Fabiana não desistiu, recusou-se a jogar a toalha. Buscou, escreveu, sorriu e até chorou...

Ele foi ficando cada vez mais indiferente, distante, parecia que nunca havia conhecido aquela moça. Ela sofreu, ainda sofre, mas mudou a cor do cabelo, conheceu outras pessoas interessantes, continua tomando sua cerveja, ouvindo suas músicas, sorrindo para os amigos e de vez em quando, até recebe uns convites pra dançar...

Fabiana tinha muitos defeitos, o pior era não saber esquecer...

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Uma quarta-feira qualquer...

Acendeu a vela para enxergar o velho e querido rádio de pilha, companheiro único de suas noites de lua e chuvas. Fez uma curta oração, uma lágrima escorreu, sintonizou na estação predileta e antes da rápida voz ganhar espaço em seu quase vazio quarto, relembrou de glórias gravadas em seu peito, quando podia caminhar, correr, suar e cantar. A camisa surrada não lhe vestia mais, agora era um símbolo, lembrança de anos, quando mais lágrimas insistiam, teimavam em cair, eram secas pelo manto...


A narração do rádio era quase um tango, ora um samba, balão que subia e descia, um corpo de impedimento, uma cabeça salvadora, a defesa cantada e um grito suspenso. Em sua cabeça lembranças de sol escaldante, cimento quente, broncas e sorrisos e uma dança suspensa de bandeiras e papéis picados, canções importais. Ainda podia sentir o cheiro da grama molhada em noites de chuvas, do barulho das solas de sapato em noites de derrotas e principalmente da folia e abraços dos amigos que ficaram apenas nestas lembranças


Em uma rápida troca de passes, deixando confuso até mesmo seus pensamentos, o baque no peito e um grito de gol, era deles, não era poesia, sim tragédia, como um soco no estômago, sem ar, mentalizou um xingamento qualquer e ouvindo os detalhes do repórter de campo, culpou alguém pela raiva.


O sofrimento corria em suas veias, ouvia que nada dava certo e imaginava cada momento, será que poderia fazer alguma diferença seu coração batendo mais forte? Desespero era o que sentia, uma tristeza por não estar presente e pensava, que se lá estivesse, seu coração bateria tão forte naquele estádio que deixariam os adversários surdos. Neste momento outro grito e o som da massa ao fundo, era a música do gol, muitas lágrimas, o beijo no escudo, o agradecimento para todos os deuses...


Antes do apito final começou a fazer contas, não para o café do dia seguinte ou almoço, mas para a classificação. Aliás, nem lembrou que naquela quinta-feira seguinte teria que mesmo com dificuldades para andar, defender algum trocado, que dependeria de outros para tomar um café qualquer.

Foi dormir feliz, abraçado ao seu manto sagrado pois em suas contas, mais três pontinhos já garantiria seu time na próxima fase, e nada para aquele velho coração torcedor era mais importante naquela noite. Apagou a vela, deitou ao som dos comentários do rádio, antes de dormir, desligou e dormiu o sono dos justos e sinceros torcedores de futebol.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Um cidadão de bem

Acordou às seis da manhã, com muito sono ainda e reclamou sozinho, olhou novamente para o telefone celular e resolveu levantar. Ainda abrindo os olhos, fez um sinal da cruz e mentalmente uma oração. Enquanto tomava um banho pensou em um colega de trabalho, “aquele filho da puta”, depois na colega, “aquela gostosa exibida”, raiva surgia, não relaxava. Fez seu próprio desjejum, café com leite e pão na frigideira, olhou seu carro popular e mais raiva sentiu, era calor e não tinha ar condicionado.

Ouvia no trajeto um jornal de uma famosa rádio, seu locutor parecia espumar de ódio, gritava, era possível imaginar o ser possuído pela ira, poucos argumentos e fatos, muita histeria e nesse clima chegava ao trabalho, sua cabeça já doía e seu humor inexistia. Olhou o colega, deu um bom dia falso, cobiçou com os olhos a colega, a imaginou nua, e depois sentiu um misto de raiva e tristeza, tinha a exata consciência que apenas pagando poderia ter um em seus braços uma mulher como aquela. Seus pensamentos na essência eram perdedores, já começava o dia derrotado.

Quase não rendia em seu trabalho. Almoçava sempre só, um prato feito, copo de suco de laranja quase sempre. Não olhava nos olhos de quem o servia, evitava sentar próximo de mesas com crianças. Tomava café, fumava um cigarro, tossia bastante, e voltava para o trabalho ainda com uma certa dor na cabeça.

Não expressava suas opiniões, mas era contra qualquer programa social, colocava-se como exemplo, “trabalho muito para sustentar vagabundo” ou “tem vaga garantida por ser preto, isso não pode!” E quando olhava o colega de trabalho lembrava, “esse macaco só pode ter chegado até aqui através dessas malditas cotas”.

Ao sair do trabalho, parou em um shopping center, não tinha vagas para estacionar, pensou, “malditas vagas para aleijado e velhos”, parou em uma delas. “Eles não podem me multar mesmo”, pensou. Comprou comida pronta, cigarros, algumas latas de cerveja barata e uma revista de grande circulação. “Bosta de país, tem que matar essa gente toda”, foi o que veio a sua cabeça ao ver a capa.

Em casa, após uma refeição rápida, começou a beber uma cerveja e em sua solidão quarentona passou a conversar com o apresentador do jornal que assistia na TV, comentava cada notícia com muitos palavrões. Entre um gole e outro, preenchia relatórios falsos de sua empresa, “eles não irão nem sentir esse dinheirinho que vai me ajudar muito”, e mentalmente se auto eximiu de qualquer sentimento de culpa, “é a crise”.

Ao fim do jornal, mudou de canal, “não assisto novela, não sou alienado” e na terceira latinha sentia-se privilegiado por assistir uma série americana, “esse gato net foi um puta investimento”.

Era sexta-feira, por volta das 22h, sentiu-se incomodado com a música que vinha da casa dos vizinhos, “filhos da puta fazem festa sempre, devem nadar em dinheiro”, ligou várias vezes para a polícia para reclamar. Acabou sendo atendido e percebeu o som diminuir. Sem sono já entregue a sua sexta ou sétima latinha de cerveja, acendeu mais um cigarro e em silêncio foi até o quintal, ouviu a música baixa e alguns risos e uma rápida conversa entre os vizinhos, “deve ser o chato aqui do lado, não gosta de animais, de crianças, vive de cara feia, é sozinho e qualquer festa, liga pra polícia... É a vida dele deve ser uma merda!”

Risos menos contidos. Ele então olhou para a parede, praguejou, tomou o restante das latinhas e foi tentar dormir. Antes fez uma oração e um sinal da cruz, considerava-se acima de tudo um cidadão de bem. Ainda ficou remoendo aquela raiva antes de pegar no sono, que só veio depois por estar quase embriagado.

Sábado, o cidadão de bem não tinha nenhum convite, nenhum plano... Tinha de fato, uma vida de merda.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Primeira Liga - Um Frankestein de Insatisfeitos

É errada, um equívoco.

Mas pode ser um começo...

O futebol assim como na vida precisa do irmão mais próximo, daquele que você conhece desde suas primeiras palavras, que gosta de roubar o brigadeiro ou vencê-lo impiedosamente no jogo de botão ou Fifa. Precisa daquele vizinho que mora do lado, que você empresta a bola e não devolve, que te ajuda na discussão com o pessoal da rua de cima ou que saia na mão contigo seja por qualquer motivo.

O Flamengo precisa do Fluminense, ele é seu irmão, do Vasco, ele é seu vizinho. Precisa do Corinthians, ele é o carinha chato da rua de cima, o Santos, é o mala da rua ao lado... O Grêmio é irmão do Inter, meio "brother" do Avai e troca uma ideia com o Coritiba, moram no mesmo bairro. O Atlético é irmão e vive brigando com o Cruzeiro, ambos moram na rua mais acima que o Palmeiras, que é vizinho do São Paulo e moram na mesma "quebrada" que o Corinthians...

Todos vivem na mesma cidade, uma tal de Brasil, mas em bairros e ruas diferentes, e algumas até distantes... O campeonato da cidade é o mais importante (isso sem contar os campeonatos de fora...), mas aquela rivalidade de bairro, de vizinho é essencial para sobrevivência de todos.
Sem analogia, indo direto ao fato, a chamada "Primeira Liga" é um "Frankestein" de insatisfeitos com razão. É preciso romper, é preciso gritar! O cartolismo de algumas instituições é mais que arcaico. Mas é preciso mais! É preciso que a Copa Sul exista, que a Copa Sudeste seja criada, assim como já é sucesso a do Nordeste e Verde (Norte).

Para o torcedor (sem colocar os fatos políticos na discussão), não é possível, não é aceitável não ter o Vasco e o Botafogo. E ver um Atlético Paranaense e Fluminense antes da hora...

A cidade Brasil cresceu demais, nossos estaduais precisam continuar, mas que sejam classificatórios para as copas regionais. Como torcedor do Esporte Clube Taubaté (mora ali, pertinho da rua dos paulistas), tenho certeza que "demoraríamos" mais para jogar contra os vizinhos grandes, mas que seria muito mais empolgante ver um Flamengo, um Cruzeiro no "Joaquinzão" daqui há alguns anos.

Pode ser utópico, mas como escrevi, apenas uma ideia.