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quinta-feira, 31 de março de 2016

Um cidadão de bem

Acordou às seis da manhã, com muito sono ainda e reclamou sozinho, olhou novamente para o telefone celular e resolveu levantar. Ainda abrindo os olhos, fez um sinal da cruz e mentalmente uma oração. Enquanto tomava um banho pensou em um colega de trabalho, “aquele filho da puta”, depois na colega, “aquela gostosa exibida”, raiva surgia, não relaxava. Fez seu próprio desjejum, café com leite e pão na frigideira, olhou seu carro popular e mais raiva sentiu, era calor e não tinha ar condicionado.

Ouvia no trajeto um jornal de uma famosa rádio, seu locutor parecia espumar de ódio, gritava, era possível imaginar o ser possuído pela ira, poucos argumentos e fatos, muita histeria e nesse clima chegava ao trabalho, sua cabeça já doía e seu humor inexistia. Olhou o colega, deu um bom dia falso, cobiçou com os olhos a colega, a imaginou nua, e depois sentiu um misto de raiva e tristeza, tinha a exata consciência que apenas pagando poderia ter um em seus braços uma mulher como aquela. Seus pensamentos na essência eram perdedores, já começava o dia derrotado.

Quase não rendia em seu trabalho. Almoçava sempre só, um prato feito, copo de suco de laranja quase sempre. Não olhava nos olhos de quem o servia, evitava sentar próximo de mesas com crianças. Tomava café, fumava um cigarro, tossia bastante, e voltava para o trabalho ainda com uma certa dor na cabeça.

Não expressava suas opiniões, mas era contra qualquer programa social, colocava-se como exemplo, “trabalho muito para sustentar vagabundo” ou “tem vaga garantida por ser preto, isso não pode!” E quando olhava o colega de trabalho lembrava, “esse macaco só pode ter chegado até aqui através dessas malditas cotas”.

Ao sair do trabalho, parou em um shopping center, não tinha vagas para estacionar, pensou, “malditas vagas para aleijado e velhos”, parou em uma delas. “Eles não podem me multar mesmo”, pensou. Comprou comida pronta, cigarros, algumas latas de cerveja barata e uma revista de grande circulação. “Bosta de país, tem que matar essa gente toda”, foi o que veio a sua cabeça ao ver a capa.

Em casa, após uma refeição rápida, começou a beber uma cerveja e em sua solidão quarentona passou a conversar com o apresentador do jornal que assistia na TV, comentava cada notícia com muitos palavrões. Entre um gole e outro, preenchia relatórios falsos de sua empresa, “eles não irão nem sentir esse dinheirinho que vai me ajudar muito”, e mentalmente se auto eximiu de qualquer sentimento de culpa, “é a crise”.

Ao fim do jornal, mudou de canal, “não assisto novela, não sou alienado” e na terceira latinha sentia-se privilegiado por assistir uma série americana, “esse gato net foi um puta investimento”.

Era sexta-feira, por volta das 22h, sentiu-se incomodado com a música que vinha da casa dos vizinhos, “filhos da puta fazem festa sempre, devem nadar em dinheiro”, ligou várias vezes para a polícia para reclamar. Acabou sendo atendido e percebeu o som diminuir. Sem sono já entregue a sua sexta ou sétima latinha de cerveja, acendeu mais um cigarro e em silêncio foi até o quintal, ouviu a música baixa e alguns risos e uma rápida conversa entre os vizinhos, “deve ser o chato aqui do lado, não gosta de animais, de crianças, vive de cara feia, é sozinho e qualquer festa, liga pra polícia... É a vida dele deve ser uma merda!”

Risos menos contidos. Ele então olhou para a parede, praguejou, tomou o restante das latinhas e foi tentar dormir. Antes fez uma oração e um sinal da cruz, considerava-se acima de tudo um cidadão de bem. Ainda ficou remoendo aquela raiva antes de pegar no sono, que só veio depois por estar quase embriagado.

Sábado, o cidadão de bem não tinha nenhum convite, nenhum plano... Tinha de fato, uma vida de merda.